sábado, 24 de abril de 2021

25 Junho 1976

Vasco em formação de guerrilha 1974
  






















































       
   
                    Desenho: Arqt. Pancho Miranda Guedes
 

 

Guia de Marcha

 Engajar e Desengajar Abril

Nasci numa família onde os valores da Liberdade, Verticalidade, Transparência, Amizade, Solidariedade, Frontalidade e Honestidade eram ensinados e, sobretudo, praticados escrupulosamente.

Descobri-me numa terra – MOÇAMBIQUE – onde existiam distratos humanos, injustiças, guerra fratricida, pides, mocidade portuguesa, mortes da guerra, prisões só porque sim, mas também cor, luz, cheiro a terra e a chuva, mar a perder de vista, por do sol único e indescritível, poesia, ternuras. Tudo isto partilhado por brancos, pretos, indianos, “monhés”, chineses, “cabritos”, “mestiços”, “mulatos”. 

Os meus Amigos eram de todas aquelas cores e raças. Aos 59 anos ainda os conservo e eles a mim. Brincávamos sobre a cor da pele e cabelos sem tormentos nem invejas. Tivemos a sorte de já poder estudar em escolas mistas ao contrário das gerações anteriores. Houve Amigos que se destacaram em todas as disciplinas, quadros de honra, grupos de desporto e estudo. Mais tarde, tornam-se profissionais de referência e gabarito.

Tenho presente coisas muito revoltantes para os meus Pais: a minha Mãe para viajar tinha que ter um documento de autorização do meu Pai. Igualmente se tivesse que viajar com os filhos e sem marido. O lápis azul que a minha Mãe odiava porque lhe cortava as palavras e sentidos nas crónicas para os jornais e lhe proibiram o livro A Criança e a Vida. A juntar a estas irritações tínhamos os telefones sob escuta e muitas interrogações de “gente estranha” de quem frequentava a nossa casa.

Na minha casa havia tertúlias memoráveis, recitais de poesia, música, teatro, cinema. Enfim uma festa de sentimentos, reflexões políticas e de todas as actualidades.

Quero ser um pouco exaustivo, mas totalmente incompleto, de nomes que me ajudaram a crescer vindos de tantos momentos partilhados em casa dos meus pais e seus Amigos e professores de escola e da Vida. Leituras, músicas, exposições, declamações, teatros, almoços e jantares, serões intermináveis. Aqui relembro alguns: Padre Carreira das Neves, Mário Viegas, Fanhais, Sérgio Godinho, José Mário Branco, José Jorge Letria, Zeca Afonso e o seu irmão João Afonso, Alípio de Freitas, Rui Knopfli, Malangatana, Pancho Miranda Guedes, Eduardo e Milú Naia Marques, Julião Azevedo, René e Helena de Assumpção, Vasco de Lima Couto, Sophia de Mello Breyner Andresen, Luís Bernardo de Honwana, José Craveirinha, Ary dos Santos, As 3 Marias, Noémia de Sousa, Luís Carlos Patraquim, Rui Nogar, Eugénio Lisboa, Caetano Veloso, Carlos do Carmo, Raúl Solnado, Amália, Chicorro (branco e preto), José Mário Branco, Jacques Brel, Marcel Marceau, Alexandre O´Neil, David Mourão Ferreira, Hêrnani Cidade, Alain Oulman, Arthur Miller, Brecht, Miriam Makeba, Casal Coimbra, Allen, Gabriel Garcia Marques, Herberto Hélder ,Urbano Tavares Rodrigues, Jean-Paul Sartre, Vergílio Ferreira, Torga, Alves Redol, Aquino de Bragança, José Cardoso Pires, Jorge Amado, Vladimir Nabokov, Kafka, Samora e Graça Machel, Palhinha, Fernanda e Pereira da Silva, Manuel e Dulce Seiça, Isabelinha Durão e marido, Caldentey, Padre Cordeiro, Passos Neves, Bazenga, Victor Hugo, Almeida Ricardo e esposa, Caldinhas, Vanda Rodrigues, Fernando e Maria Augusta Dias Coelho, Rui e Maria Augusta Barreira, Veloso, António Schwalbach, Mascarenhas Gaivão e esposa, Sr. Alves e esposa, Dinora, avó Margarida……………………………………

É nesta realidade que explode o 25 de Abril, numa quarta-feira quente e húmida tão comum na cidade da Beira. Em casa cochichava-se, ainda renitentes, a veracidade dos factos e notícias que chegavam aos poucos.

Verdadeiramente o 25 Abril concretiza-se, em certeza, a 26. Há uma alegria contagiante em minha casa e com os Amigos que os meus pais tinham.

As sementes e utopias da LIBERDADE estavam-me no sangue e em alguns dos meus amigos todos na casa dos 12 anos.

A 27 de Abril, sexta-feira, era dia de içar pelas 7h30 a Bandeira Nacional e da Mocidade Portuguesa nos mastros do Ciclo Preparatório Dr. Baltazar Rebelo de Sousa. Com genuíno fervor revolucionário e prontamente apoiado pelo Sérgio Coimbra, Amós, José Alexandre C. Leitão e Luís Sarmento baixámos a bandeira da Mocidade e a queimámos num ápice. A legião perfilada e impecavelmente fardada num misto de surpresa e raiva, foca-se em nós para um confronto renhido corpo a corpo. A coisa prometia e tinha tudo para acabar mal mas, atentamente, o subdirector do ciclo acaba com a contenda e, pelas orelhas, encaminha-me a mim e ao Luís, com o Sérgio e o Alexandre pela mão dos contínuos, ao gabinete da reitoria.

Depois de severamente recriminados foram os nossos Pais chamados para tomarem conhecimento dos filhos selvagens que tinham bem como para dar conta da suspensão e valor a pagar da valiosa bandeira da mocidade (toda ela cosida à mão). Escusado será dizer que a suspensão não se concretizou e a nossa gloriazinha tomou dimensões adamastoras.

Seguiram-se dias, meses de total euforia transformadora.

O engajamento num país novo, sem diferenças de raça, religião, crenças várias eram o lema. Para não esquecer a construção do Homem Novo que se desejava e ambicionava.

Aos 12 anos enfileirei-me nos primeiros cursos de alfabetização pelo método João de Deus. De noite dava aulas a velhotes e mamanas com os seus filhotes aconchegados às costas pelas capulanas. Uma experiência de um enriquecimento tamanho!

Vieram também as experiências na rádio Pax, as campanhas das latrinas, das manchambas, da apanha das moscas e mil e umas outras “actividades revolucionárias”.

Em simultâneo aconteciam coisas que não compreendíamos como a profusão de contentores por tudo quanto era lado, que se enchiam de pertences das casas de tantos vizinhos e amigos. Depois a partida de muitos amigos, vizinhos e conhecidos, para Portugal, África do Sul, Rodésia, Venezuela…. Diziam que se iam embora porque alguém lhes tinha dito que aquela não era mais a terra deles, que tinham medo do que se adivinhava, etc, etc.

Vieram depois outros acontecimentos estranhos como o de termos que voltar a cantar o novo hino nacional antes de entrarmos nas aulas. Todos os dias da semana. Antes de Abril de 74 acontecia o mesmo, mas só às sextas-feiras. Era detestado por muitos (cantávamos o hino nacional e o hino da mocidade portuguesa).

A estonteante alegria de nos sentirmos engajados era total. As horas não chegavam para tanto que havia para fazer e “construir”. Moçambique era a nossa terra e os sonhos de igualdade e fraternidade eram enormes.

A 7 de Setembro de 1974 concretizam- se os Acordos de Lusaka e uma tremenda convulsão social dá-se nas cidades de Lourenço Marques e Beira. Há confrontos sangrentos, mortes, barbáries, ameaças de morte entre os que queriam Moçambique para todos os que lá nasceram e viviam e os que queriam que os “brancos” desaparecessem para a sua terra.

Era expectável que as Forças Armadas Portuguesas assegurassem as populações, mas os fervores revolucionários no seu interior deixaram claro que queriam era partir, rapidamente e em força, para Portugal. Figuras de pensamento diferente da nova força moçambicana como Joana Simeão, Paulo Gumane e Uria Simango “desapareceram”, primeiro para campos de reeducação e, depois, para nenhures.

Neste mês de Setembro o meu Pai (que fazia parte dos Democratas de Moçambique) e eu somos ameaçados de morte. Por questões de segurança eu, o José Alexandre e o Carrapatoso partimos noite escura para um campo de treino da Frelimo com o Comandante Afonso Henriques onde efectuámos um dos últimos cursos de guerrilha antes da independência com a duração de 5 meses.

Tenho para mim que o começo do desmoronar do sonho do Homem Novo começa neste período. Milhares de pessoas (brancos, pretos, mulatos, chineses…enfim, moçambicanos ou portugueses?) anseiam por partir de Moçambique.

Inicia-se o desengajamento das convicções revolucionárias, das utopias que tinham sido incutidas nas famílias de uma pátria nova, dos sonhos de toda uma nova geração de Continuadores.

Apercebendo-se do que iria acontecer, em Novembro de 1974, a Comissão Nacional da Descolonização admite obrigar os funcionários públicos portugueses a ficar em Moçambique depois da independência e acusa-os de colonialistas e de serem reaccionários por quererem fugir. Segue-se a famigerada decisão do Estado Português de obrigar, em 2 anos, a escolherem a que nacionalidade queriam ficar ligados: a moçambicana ou a portuguesa. Sabia-se que quem não escolhesse a portuguesa perderia todos os descontos efectuados para efeitos de reforma. Estas e outras precipitadas decisões conduziram ao êxodo do território, entre lágrimas e desesperos, de quem viu desaparecer todo um sonho de Vida!

 

Chegámos ao dia da Independência, 25 de Junho de 1975. Consta que nesse dia, no momento da mudança das bandeiras (da portuguesa para a moçambicana), o Presidente Samora Machel, que era normalmente uma pessoa de sorriso franco, fácil e aberto, estava profundamente apreensivo. Ao ser indagado do seu estado, num dia tão sonhado e desejado, ele terá respondido: “estamos a assistir à entrega de um “brinquedo” a uma criança. Enquanto não o estragar não vai descansar. Esta independência foi demasiado rápida e não estamos preparados para governar o país. Saímos do mato directamente para a governação. Com o êxodo da administração pública vai haver muita confusão”.

De um momento para o outro milhares de cidadãos ficaram sem terra, pátria e identidade.

Chegam a Portugal e são recebidos, genericamente, como selvagens, gente que comia com as mãos, no chão como animais, desalojados, escorraçados, repatriados, fugitivos, regressados, RETORNADOS.

Retornado é a palavra e o bulingue que a sociedade portuguesa (mesquinha, tacanha, ignorante, beata e apostólica-romana) usa para os seus filhos. Retornado é alguém que retorna, volta às origens. Mas quem nunca veio a Portugal e que aqui não nasceu retorna ao quê?  

Quando alguém nasce e é criado numa terra, onde se é feliz e educado, trabalha e vive, casa e perde familiares, não está preparado para lhe dizerem que aquele espaço já não lhe pertence. Portugal, para muitos de nós, era a terra onde se ia nas licenças graciosas dos nossos pais para ver os avós e alguma família. Algum dos governantes alguma vez mediu os estragos que provocou a milhares de seres humanos e a várias gerações, por lhes ter retirado o Direito à sua terra? Algum dos grandes revolucionários portugueses e moçambicanos alguma vez pensou nas perdas afectivas e patrimoniais que causaram? Foi para isso que lutaram?

Se aquelas gentes se levantaram, em Portugal, foi pela determinação com que se prepararam e viveram em Moçambique. Portugal nunca evoluiu tanto desde então com a força e qualidade humana dos que retornaram.

E esta independência favoreceu quem e o quê em Moçambique 46 anos depois?

Não se teria ganho muito mais se fossem acautelados os interesses dos dois países e dos seus cidadãos? Havia pressa para quê ou para quem?

Depois da independência de Moçambique começaram os excessos inerentes, como alguém o disse como “normais”, a qualquer revolução.

Assistiram-se a controlos rodoviários de 100 em 100 metros com muitos frelimos de tenra idade e kalashnicov em punho, esta maiores que eles, à identificação das populações exigindo-lhes bilhetes de identidade (numa terra em que a maioria da população nem sequer sabia o que isso era). Quem não o tivesse era agredido e preso e se fosse mulher era rotulada de prostituta; quem começou a ser crítico, do que quer que fosse, era denunciado e levado para campos de reeducação. As denúncias e detractores cresceram por todos os lados e a sede de poder começou a crescer por todo lado; no liceu Pêro de Anaia, com chão de argila endurecida como pedra, os alunos eram convidados a fazer machamba, …

Com as estruturas administrativas vazias, pelo êxodo, começaram a ser recrutados muitos alunos com 12 e pouco mais anos para as estruturas do aparelho de estado e da educação.

Seguiu-se a “recolha” forçada dos estudantes para “arrancarem” em força para estudarem em Cuba, República Democrática Alemã, República da Checoslováquia. Grande parte chegaram aqueles países em pleno inverno com roupa de verão e oriundos de um país com uma média de 30 graus de temperatura.

Há um ditado chinês que assim diz: “Quando não sabemos para onde vamos, qualquer vento serve”.

 

Estamos em 2021 e é urgente o debate, a análise serena e profunda da história destes 46 anos de Independência de Moçambique. Sem rancores, desvios interesseiros dos factos históricos, tons de pele, religião ou políticas.

É imperioso saber:

- Quem foi o verdadeiro responsável da Lei 7/74?

- Quem leu o Programa Original do Movimento das Forças Armadas quanto à consulta à nação sobre o futuro e modo de reconhecimento do direito à autodeterminação das colónias?

- Análise detalhada do livro “O 25 de Abril e o Conselho de Estado – A questão das Actas”, Edições Colibri

- O que aconteceu aos líderes dos outros movimentos existentes em Moçambique, que não a Frelimo?

- O que fez Moçambique aos seus jovens que mandou estudar fora do país para os preparar para os desafios futuros da pátria?

- Porque continua Moçambique a ser governado pelo mesmo partido político desde a sua independência? Porque é que para se chegar aos lugares de topo da gestão do país tem que se ser membro da Frelimo?

- Onde está o levantamento das barbáries cometidas depois de Abril em Portugal (pelo COPCON, comités disto e daquilo, na reforma agrária) e em Moçambique (com os comités de tudo e mais alguma coisa, prisões arbitrárias de que a Machava é um dos exemplos) com ambos os países a terem uma nova horda de “pides”? Tudo em nome de uma falsa “Liberdade”

- Porque não apostaram, ainda, Portugal e Moçambique num ensino sério e generalizado da sua juventude?

Já Eduardo Lourenço afirmava, em “Nós como Futuro”: “Temos de saber e sentir que a viagem no nosso passado apenas começou. E que o futuro desse passado está confiado à nossa guarda”.

Como alguém já disse, “Portugal tem um défice de ambição. Temos excesso de centralização vai para 900 anos. Isto implica falta de ambição e de empreendedorismo. Maioritariamente as suas gentes querem trabalhar para os serviços públicos e veêm no Estado a sua salvação. O Português gosta que o governem”.

A esperança renova-se nas novas gerações portuguesas e moçambicanas cujos talentos, sentido crítico, sem cedências à mediocridade política, está a crescer e a modificar o estado das suas Nações erguendo, determinadamente, a Marca Portugal e a Marca Moçambique.

 

Vasco Malaquias de Lemos

Lisboa, Abril de 2021

 

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